Porque você não gosta de Filosofia e, talvez, não seja sua culpa

Introspecção, ação resumida por Sócrates na célebre frase “conheça-te a ti mesmo”, é uma das tarefas mais difíceis que existe, e uma das mais importantes. Veja, por exemplo, a pergunta mais clichê de entrevistas de emprego: “quais são as suas maiores qualidades, e quais são os seus maiores defeitos?” Aposto que você suou frio na primeira vez que foi questionado, sua boca ficou seca e a ignorância tomou conta de seu rosto. É a vida: o evidente nunca é procurado, até que bate em sua porta.

Como, então, obter essas informações básicas, porém tão essenciais sobre você mesmo que vão guiar todas as escolhas de sua vida? A consciência, que permite o livre-arbítrio dos seres humanos (ou seja, a liberdade de escolha), somente é percebida através do próprio ato de sua expressão: ela é, por sua natureza, um objeto ativo. Como diria Ayn Rand: “se realidade é identidade, consciência é identificação[1].” Portanto, a única maneira possível de identificar sua própria consciência é observando como ela reage ao mundo.  Em última instância, suas preferências expressam quem você é[2].

E se você não gosta de filosofia, é importante entender o motivo para tal, pois é ela que lhe permite entender quem você é. Quando falo para as pessoas que amo Filosofia, normalmente sou taxado de louco. O mais engraçado da situação é que as conversas que precedem essa “constatação” geralmente são bem filosóficas. As pessoas amam filosofar, o ato de refletir e chegar a conclusões, mas quando se entra na disciplina em si, ou seja, na sistematização desse filosofar, o desprezo se torna aparente.

É interessante notar como as pessoas demonstram esse sentimento de aversão. Durante minhas conversas filosóficas, registrei duas reações proferidas por quem não compartilha, ou compreende, minha paixão. Essas atitudes são produto de um dos dois pontos de vista mais comuns da filosofia moderna[3]:

  1. O primeiro deles chamarei de idealista, pois reage sacralizando a Filosofia, colocando-a acima da capacidade racional do homem. As reações características desse modo inconsciente de pensar são: “Filosofia? Ah, esses conceitos são muito complicados pra (sic) mim” ou “eu não sou inteligente o bastante para falar disso”.
  2. O segundo deles chamarei de pragmatista, pois reage rejeitando conceitos abstratos julgando-os desnecessários. As reações características desse modo inconsistente de pensar são: “Filosofia? Sexo dos anjos”; “filósofo é tudo vagabundo que não trabalha” ou “nunca vi filosofia trazer comida pra casa”.

No final das contas, essas duas formas aparentemente tão diferentes de pensar, levam ao mesmo lugar: ao abandono total de reflexão consciente sobre como as coisas são (metafisica); como você sabe disso (epistemologia); como você deve agir (ética); como devemos viver uns com os outros (politica) e como podemos expressar tudo na realidade (estética)[4].

No passado, tive essa atitude de ignorar e me afastar da filosofia. Hoje, escrevo esse texto em completa defesa da disciplina. E foi justamente na tentativa introspectiva de encontrar o que mudou em mim que nasceu a ideia desse texto.

A melhor formar de expor o caminho que leva alguém a se tornar idealista ou pragmatista pode ser resumida em três pontos: (1) a falta de motivação na hora de estudar Filosofia ou a ausência da motivação correta. (2) a complexidade quanto ao conteúdo em si e o seu momento de apresentação ou (3) a eventual ‘espantalhização’ da matéria. É essencial entender que, em qualquer teoria bem-desenvolvida, cada ponto implica no outro[5], portanto, talvez a redundância de partes desse texto seja um sinal de que estou falando a verdade. Comecemos…

Você percebeu como comecei esse artigo? Não comecei direto pelos pontos argumentativos, tampouco pelo problema em si. Por quê? Se eu começasse direto na filosofia, para um grupo que, assumo, não gosta dela, já teria fracassado. A primeira coisa a fazer quando se apresenta novas ideias a um grupo é mostrar a relevância delas para a vida de seus integrantes. Despertar o interesse do ouvinte é extremamente necessário para obter sua atenção. Se você não liga para o que estou escrevendo, porque perderia seu tempo lendo? Afinal, tempo é o bem mais escasso que existe.

Por isso, em todo seminário que falava sobre educação, comunicação e propagação de ideias, Leonard Peikoff, começava fornecendo motivação[6]. Grandes oradores começam seus discursos com ótimas frases ou pensamentos; jornais usam manchetes; textos acadêmicos têm títulos e resumos e cinemas têm trailers. Contudo, na educação formal, é extremamente raro ver um professor dar boas razões para suas matérias serem estudadas.

Por exemplo, na minha faculdade, o único professor que se deu o trabalho disso foi o de uma disciplina optativa que precisa explicar e, talvez, argumentar por que ela deveria fazer parte do currículo em si. Teorizo aqui o motivo desse negligência ou, pelo menos, o que com certeza contribui para tal[7]. Temos no Brasil um sistema de base curricular comum, imposto por agentes reguladores controlados por um braço executivo do governo, o MEC (Ministério da Educação).

Todo órgão estatal reforça leis através da força. Na maior parte das vezes, ela só é utilizada em última instância; todavia, todas as outras medidas dependem na capacidade que a instituição tem de lhe forçar a obedecer. Toda vez que você insere a possibilidade do uso da força como método de resoluções de problemas em uma relação social, você altera a sua lógica interna[8]. O motivo de o colégio ofertar a matéria que oferta – e de o professor ensinar do jeito que ensina – advém da ponta de um fuzil, e é impossível motivar alguém a pensar através de um método irracional. Fazer os outros pensarem sem pensar é impossível[9].

Agora, o segundo ponto. Pense no processo de construção de uma casa: primeiro, se constrói as bases, depois, as paredes e, por fim, o teto. Se a construção começasse pelo teto não se construiria uma casa, mas sim uma aberração que alguém chamaria de arte moderna. Da mesma forma que uma casa, o conhecimento humano possui uma estrutura hierárquica de construção. Primeiro, inicia-se com coisas simples para depois chegar às coisas complexas. Quando falamos de conhecimento, o caminho é da percepção (concreto) aos conceitos (abstrato). Quanto mais longe da sua percepção, mais complexo é apreender o conceito[10]. Agora, existe algo mais abstrato do que a própria teoria que explica esse processo?

Ensinar a pessoas essencialmente vazias conceitos que necessitam de diversas etapas anteriores de conhecimento é homicídio mental. É esperar fundamentalmente que o que é ensinado seja aceito como um dogma. O MEC justifica o ensino de filosofia no ensino médio, essencialmente, pelo caráter crítico da matéria, como uma ferramenta “anti-doutrinária”[11]. É utopia pensar que, com 3 anos de ensino filosófico (em nível médio), um adolescente teria a capacidade de debater com um professor de ensino superior. Se isso fosse verdade, seria um atestado da falência do ensino superior brasileiro e da indústria do currículo regulamentada pelo Estado ou, por um prisma positivo, a descoberta mais maravilhosa do século: que a água das terras tupis-guaranis tem propriedades mágicas atribuidoras de genialidade. E aposto que a alegação feita pelos burocratas brasileiros não seria nenhuma das duas primeiras.

O segundo ponto liga completamente ao terceiro. Por ser impossível ensinar uma disciplina tão complexa e abstrata no pouco tempo requisitado pelo MEC, a filosofia tem de ser simplificada e modificada para ser compreendida por mentes ainda não preparadas para sua totalidade. O problema é que, ao fim desse processo, o produto não apresenta semelhança com o objeto inicial.

O método de obtenção de conhecimento, além de hierárquico, é integrativo, ou seja, é um processo de agrupar entidades em grupos de semelhantes, reduzindo muitas percepções em uma concepção que a mente humana, limitada como é, consiga compreender[12], processo que consiste em achar o “um nos muitos”[13]. É assim que se originam os conceitos e, após construídos, tornam-se objetivos. A unidade que se origina, então, possui uma identidade. Na tentativa de apresentar a filosofia para jovens em um tempo limitado, extirpa-se uma das partes mais essenciais da filosofia: o filosofar integrado.

Qualquer filosofia que pretenda honrar seu nome deve apresentar uma explicação consistente em todas as áreas fundamentais. Falar sobre o mundo sem saber como ele é, não funciona. Falar sobre como devemos agir sem saber onde ou como sabemos disso, não funciona. Falar sobre como devemos nos organizar sem saber como devemos agir… Você entendeu.

O currículo normativo de Filosofia não é um curso de Filosofia em si, mas um curso deficiente de História da Filosofia que apresenta fragmentos de sistemas de grandes intelectuais que, apesar de terem valor educativo, ao serem separados do resto das ideias que lhes dão contexto, perdem qualquer significado. Por isso, atribuí ao enumerar os pontos o neologismo ‘espantalhização’, utilizando a falácia lógica do espantalho como modelo. Tal falácia consiste em distorcer o argumento de alguém para satisfazer as necessidades do próprio discurso[14], nesse caso com boas intenções, mas resultados terríveis. Para ajudar o aluno apreender o conhecimento, separa-se a identidade de seu possuidor, tornando a Filosofia aquilo que seus críticos comuns a acusam de ser: uma torre de marfim.

Mesmo em História da Filosofia, o ensino é insuficiente. A causa nem abençoada por Rita Da Cassia[15] deixaria de ser impossível, afinal nem estudantes de filosofia passionais, como quem vos fala, conseguem entender completamente sistemas tão complexos como o kantiano. Ensinar esse filósofo alemão através de excertos é um desserviço à mente de um jovem.

Esses três erros de didática, tanto de motivação, como de escolha curricular, quanto de método de apresentação, jogam o aluno naqueles tipos comportamentais idealista ou pragmatista. Se o professor cometer tal pecado, com comprometimento e eloquência, provavelmente, o aluno não entenderá o motivo de não conseguir ver valor na matéria e se tornará um idealista. Já se o professor carregar a cruz, com sofrimento e apatia, o ceticismo da criança será atiçado tremendamente e, logo, o pensamento pragmatista domará o seu âmago.

O problema que gera o descontentamento das pessoas quanto ao estudo da Filosofia, portanto, não é culpa da disciplina, mas sim das instituições; e dos produtos de péssimas instituições: os péssimos profissionais. E o pior é o caráter vicioso desse ciclo maligno. Quanto pior ela for apresentada nas escolas, pior serão as atitudes das pessoas frente a ela. É triste pensar nas milhares de pessoas que se interessam por ela já começam com bases tão frágeis. Como disse no início desse texto, a maneira que você reage à realidade, é uma expressão de quem você é.

Em resumo, frente à tamanha aberração, a reação dos bons é evitá-la; a reação dos maus, é apreciar o pior que pode existir nela. Ou você acha que a situação da educação brasileira é um acaso do destino?

A pergunta final é: existe solução? E a resposta está no fato de que você leu esse texto. E se você chegou até aqui, você sabe a resposta. A solução é você.

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Revisado por Matheus Pacini

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[1]RAND, Ayn. For the New Intelectual. New York: Penguin Books, 1961. pag.124

[2]Esse conhecimento é resumido lindamente na passagem da obra A Nascente: “para dizer eu te amo, primeiro tem de se dizer eu”.

[3]Existem duas formas mais comuns de filosofia moderna, demonstradas nesse texto por suas exemplificações nas respostas de pessoas comuns a filosofia. A primeira idealista, em metafisica são os sobrenaturalistas ou religiosos; em epistemologia, os racionalistas; em ética, os intrínsicistas. A segunda, chamei de pragmatista, em metafisica seriam os materialistas; em epistemologia, os céticos ou culturalistas; e em ética, os subjetivistas.

[4]RAND, Ayn. Philosophy Who Needs it. New York: Penguin Books, p. 2.

[5]PEIKOFF, Leonard. The Dim Hipothesis, 2012. p. 40. “By its nature philosophy, even a nihilist one, is not a pot-pourri of isolated ideas, like fortunes pulled from chinese cookies; but a whole, na integration of ideas- specifically, of the fundamental ideas on wich all its others ideas depend. Within a philosophy, its metaphisics implies its epistemology, and vice versa, and it is this unity that implies ethics[..]” Ou seja, quando a filosofia está correta, cada ponto acaba no seguinte, e separá-los é somente um exercício de exposição e conceituação.

[6]No começo de suas palestras sobre educação e comunicação de ideias, Peikoff sempre começa falando sobre motivação.

[7]Não estou ignorando a possível negligência profissional, o cansaço ou a deficiência da formação do professor, porém estou abstraindo as informações anedóticas e tentando identificar um fator que explica o porquê de o problema ser tão universal no Brasil. Se tiver dúvidas, pergunte a qualquer universitário ou estudante de ensino médio se os seus professores falam sobre a importância da matéria, rapidamente descobrirá a desconexão das disciplinas com a realidade concreta. Mesmo assim, o caráter dessa proposição é teórico.

[8]O intelectual americano Stefan Molyneux disserta intensamente sobre isso no seu canal do youtube de mesmo nome.

[9]No seu texto publicado pelo livro Philosophy Who Needs It ( 1982), chamado An Open Letter to Boris Spassky. Rand propõe 7 mudanças ao jogo de xadrez que fariam o jogo ser impossível de ser jogado, todos usando as filosofias coletivistas como base. Leia e entenderá como a força altera completamente as relações.

[10]Checar o capitulo Concept Formation no livro Introduction to Objectvist Epistemology seccond edition. RAND, Ayn.

[11]Texto intitulado FILOSOFIA está disponível em: httpp://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14Filosofia.pdf .

[12]Explicação da função cognitiva dos conceitos, pelo que é chamado de epistemologia do corvo. RAND, Ayn. Introduction to Objectivist Epistemology second edition”. p. 2.

[13]Dito o processo fundador da filosofia ocidental, iniciado por Thales de Mileto ao dizer, “Tudo é Agua”

[14]Cheque a definição da falácia do espantalho no https://yourlogicalfallacyis.com/br/espantalho.

[15]Santa católica das causas impossíveis.

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